Sem baile, DJs da 17 trabalham em empregos não essenciais e ficam expostos à Covid-19
Hoje é sábado, 23h, a noite está quente e seu destino é Paraisópolis, a segunda maior comunidade de São Paulo, que tem mais de 100 mil habitantes.
Você desce do Uber na avenida Hebe Camargo, usando um óculos escuro Juliet —e aí você pode me perguntar, mas óculos de noite? Sim, eu te digo. É estilo, camisa da Lacoste e tênis da Oakley. O que você está vestindo é muito importante neste momento. Imagine que a sensação é de que estamos indo para algum festival de música dos grandes: com muito trânsito para chegar, som alto, pessoas bebendo nas ruas. Você desce algumas vielas e o fluxo (talvez você conheça como baile de rua) começa a ficar maior.
Enfim, você chega na rua Herbet Spencer. Não entendeu? Estamos no Baile da 17. Sim, é agora que você começa a observar os carros tocando funk bem alto com seus paredões de som, jovens de todos os lugares de São Paulo e até excursões de fora do estado presentes na comunidade, todos felizes e bem parecidos pelas roupas, gingado e corte de cabelo.
Talvez você não saiba, mas estar nesse lugar é o atual sonho de muitos jovens —ou nem tão jovens assim. O coronavírus tem não só tirado as vidas de milhares de pessoas, principalmente das comunidades, como também acabado com suas únicas opções de emprego e lazer.
Você pode achar que “era só uma festa, as pessoas podem aguentar durante a quarentena”. Mas será que podem?
O Baile da 17 não é só uma festa. Ele exige muito trabalho para ser feito e emprega muitas pessoas. Tem o DJ, a tia que vende bala, chiclete, cigarro, o pessoal da limpeza, os funcionários dos bares, tabacarias, o cara do carro de som…. Lembrou deles?
“Cheguei a ficar desesperado e pedi a Deus que me desse uma luz”, lembra o DJ Alef, de 26 anos. Morador de Paraisópolis, ele conta que viu as contas começarem a chegar e ficou completamente atônito, “sem saber o que fazer”.
Alef é DJ do Baile do Bega, outra festa de rua de Paraisópolis que veio crescendo nos últimos meses antes da quarentena. Diferente do Baile da 17, o “Bega é uma festa na rua, mais parecida com balada. E, por ficar em uma região mais isolada, não temos problemas com barulho”, explica o DJ, que já tocou em casas de shows como Club A e Love Story. Pois é. Viver de tocar em bailes na periferia era algo que, até então, parecia promissor para ele. “Comprei equipamentos e estava profissionalizando ainda mais o baile”, relembra.
Mas você deve estar se perguntando: “Ué, como um DJ ganha dinheiro em um baile de rua? A entrada não é gratuita?” Bom, sim. A verdade é que você pode começar tocando com uma mesa de som em algum estabelecimento, ou próximo de alguns e, então, “é feito o rateio entre os comerciantes e carrinhos de bebida daquele lugar para pagar o DJ”, explica Alan Carlos, 25 anos, mais conhecido como DJ Neguinho do Uno. Segundo ele, outra opção é equipar o carro com um som bem potente e parar na porta de algum bar ou tabacaria, combinar um valor com o dono e ficar lá, tocando funk e atraindo pessoas para o estabelecimento.
“Cheguei a gastar mais de R$ 17 mil com meu carro para fazer isso mas, por conta da lei do silêncio e das multas, parei de tocar com o carro e trabalho como DJ mesmo”, diz Alan, que hoje é DJ oficial da Equipe Mandelão (se você quiser um paredão de som para tocar em alguma festa aqui em São Paulo, é provavelmente com eles que você vai falar).
O dinheiro que circula no baile funk é bem democrático: vai desde o dono do bar, que ganha mais durante o evento, passa pelo DJ e pela tia que vende bala e cigarro, o dono do carro de som e chega até o pessoal da limpeza, que é pago pra limpar as ruas depois da festa. “Eles fazem um serviço melhor que o da Prefeitura. No dia seguinte do baile, nem parece que teve festa”, afirma Alan.
Mas esse dinheiro está em extinção no momento —e provavelmente será assim por muito tempo. Se as casas de shows da capital estão fechando, como é que está a vida dos trabalhadores dos bailes? “Graças a Deus, arrumei um emprego em uma loja de celulares aqui e estou conseguindo me manter nesse momento” conta Alef. Outros, como o Alan, voltaram a fazer o que faziam antes de se tornarem DJs. “Tenho trabalhado como motoboy de aplicativo enquanto espero a pandemia passar, e tenho visto que muita gente que nem era motoboy antes e que agora está fazendo isso também.”
A atual falta de recursos para as comunidades tem deixado duas problemáticas bem visíveis: a fome e os subempregos cada vez mais precários. Muitos têm aderido o trabalho com aplicativos de entregas, já que hoje você não precisa de uma moto para fazê-las —uma bicicleta pode fazer o serviço.
O problema é que, para isso, você vai ter que se submeter a pedalar cerca de 30 km por dia apenas para chegar à região central. É assim que alguns trabalhadores chegam à exaustão e em muitos casos andando por vias que na sua maioria não são equipadas com ciclofaixas. Eles também não tem benefício nenhum do aplicativo como vale alimentação ou convênio médico e em algumas situações tendo que entregar comida mesmo pedalando com fome.
Além disso, resta simplesmente trabalhar em empregos não essenciais na quarentena, ficando exposto ao vírus. “Chorei bastante porque sentia muita falta de ar e muita dor de cabeça, tinha perdido um amigo há algumas semanas e outro no fim de semana [anterior de Alef contrair a doença]. Aí decidi ir ao médico e descobri que estava com isso. Tinha medo de ‘bater as botas’”, relembra Alef, que contraiu a Covid-19 há cerca de um mês. “Peguei porque tinha muito contato com clientes e também indo no centro atrás de peças de celular.”
O que esperar, então, para o futuro dos bailes? “Não vejo a hora dessa quarentena acabar, estou me profissionalizando ainda mais agora, investi muito em equipamento antes da pandemia e vamos fazer bailes de segunda a domingo se Deus quiser”, diz Alef.
Apesar do otimismo do DJ, é fato que o setor cultural é dos que mais têm sofrido durante a pandemia, e a previsão para o fluxo voltar na quebrada é das mais pessimistas. “Não quero pensar em data. Estou entrando em depressão de pensar nisso. Mas quando voltarmos para o baile, Paraisópolis vai ficar pequena”.
Promessa é dívida, Alef.