Pandemia sufoca berço cultural do Grajaú
“O telefone tocou novamente, fui atender e não era o meu amor!” – esse trecho da música do Jorge Ben Jor, cantado aos berros por um público seleto de amantes do samba, é uma das minhas últimas lembranças de um domingo no Pagode da 27.
Não sabe do que eu estou falando? “Que pena”, continuaria Ben Jor. Também não sabe o que está perdendo, então. Com mais de 14 anos de existência (e resistência) e sempre vestindo vermelho, branco e preto, essa roda de pagode tem colocado o Grajaú, bairro do extremo sul de São Paulo, na história do samba.
Já que o assunto é música e Grajaú, precisamos deixar claro que esse bairro é um polo de arte e cultura sem precedentes. Muito além de Criolo, criado por ali, e de Sabotage, ex-morador da favela do Sucupira, essa região realmente vive de música.
Para você ter uma pequena ideia do que estamos falando, é importante entender que em uma só noite é possível ir a uma batalha de rap no Centro Cultural do Grajaú, depois a um forró risca faca no Point do Fran e, então, partir para o Mitos e Lendas para ouvir um show de rock de alguma banda cover do Metallica, Nirvana ou Ramones. Se você der sorte, ainda pode pegar um baile funk na favela da ZR – tudo isso se você estiver “sem tempo, irmão”.
Incrível, né? Mas a rua Manuel Guilherme dos Reis, número 500, mais conhecida como rua 27, onde a roda de samba tinha o costume de se reunir sempre aos domingos às 16h, não tem sido mais a mesma. É triste pensar que talvez boa parte de todo esse roteiro musical não exista mais quando estivermos fora da quarentena. Afinal, se locais tradicionais de música e festas estão fechando as portas em definitivo, o que será do Grajaú? Eu também não sei.
Passado o nosso pequeno mergulho pela vida musical do bairro, voltamos, então, a um dos sambas de roda mais tradicionais de São Paulo: o Pagode da 27. Assim como os demais locais dependentes da cultura – e de uma bela aglomeração -, a festa está passando por uma pausa forçada neste momento.
O grupo é composto por dez músicos. “Alguns dos integrantes têm renda fixa. No meu caso, que não tenho, está muito difícil, porque além dos shows com o Pagode da 27, eu fazia apresentações solo em outros lugares”, lamenta Jefferson Santiago, que é percussionista.
Com o distanciamento social e o coronavírus no auge, nem mesmo os ensaios estão acontecendo. Apesar disso, uma saída muito bem-vinda para os grandes grupos e cantores do mainstream nacional tem sido as lives cheias de patrocínios, grandes cenários e views. E é claro que o Pagode da 27, que chega a reunir cerca de 300 pessoas semanais em seus eventos na rua, teria sua vez.
“Fizemos uma live no dia 24 de maio e deu muito resultado. Fomos patrocinados por comércios aqui da região. Além disso, tivemos um aumento significativo no nosso perfil do YouTube, uma boa repercussão. Viemos na contramão das lives que estão rolando: mostramos livros, grafite, muita coisa linda da quebrada” conta Jefferson, que promete: “Provavelmente dia 30 de agosto faremos outra. Vamos completar 15 anos. Tínhamos muitos planos para esse dia mas, como a pandemia veio, o que nos resta é fazer uma live”.
Na periferia, o sentimento de união nos piores momentos é o que fortalece e dá esperança. E é isso que vem acontecendo com o Pagode da 27, de acordo com o percussionista. “Estamos fazendo um trabalho social incrível agora. Com o dinheiro que arrecadamos na live, nós ajudamos a comunidade com doações de cestas básicas e, com elas, também estamos mandando livros”, explica.
O grupo, que já tinha um projeto literário, chamado “Meu Livro do Mês”, tem conseguido ampliar o alcance com o dinheiro recebido pela live. “Com a verba que foi arrecadada, compramos livros novos. Além de entregá-los junto com a cesta, nós conversamos sobre o livro que foi entregue no mês anterior e deixamos um novo,” completa Jefferson.
Apesar da importância para a sociedade e das tentativas de sobreviver na crise, assim como a maior parte do setor cultural de São Paulo, o Pagode da 27 também sofre com a falta de incentivo da prefeitura e governo. “Fizemos uma reunião com a Secretaria de Cultura e existe a intenção de uma ajuda para lives, mas eles estão ajudando apenas artistas solo por causa do distanciamento social. Nós que somos grupos não nos encaixamos nessa ajuda. Falamos com o vereador Alfredinho (PT) que é aqui da região, e que ficou de ir atrás de empresários para nos ajudar com a live de aniversário do nosso grupo”, conta. Entramos em contato com o vereador mas não tivemos resposta. A Secretaria Municipal de Cultura mandou a seguinte nota “seguindo os protocolos da Vigilância Sanitária diante da pandemia, as lives apoiadas pela Prefeitura podem contar com dois ou mais profissionais residentes no mesmo local, desde que apenas dois apareçam no vídeo, independente da quantidade de integrantes do grupo, não incitando a possibilidade de aglomeração. O grupo pode receber a emenda do vereador e fazer a live, desde que siga os protocolos estabelecidos”.
Com o futuro incerto, resta ao Pagode da 27 – e a nós – os versos do compositor Nilton Barros no samba “Resistência Popular”. Resistir e existir para que, após tudo isso, possamos estar todos mais aliviados e cantando na roda de samba – “Zona Sul, tenho 27 motivos para viver no Grajaú!”.