Websérie busca descobrir o futuro da periferia no pós pandemia
Como você é representado na mídia? Bom, se você for branco, classe média e morador de algum grande centro, talvez seja como uma família digna de comercial de margarina. Ou como o núcleo protagonista de alguma novela ou filme, aquele tipo de cena visto diariamente.
Mas se você mora em algum bairro periférico, fica bem difícil de se enxergar. Pior ainda se você for o “tio da vendinha”, a senhora que cuida das crianças em casa porque não têm creche ou o jovem que não pode continuar a faculdade, já que ela fica muito longe do trabalho e não sobra dinheiro, no fim do dia, para pagar internet e fazer EAD.
Sim, essas pessoas existem no dia a dia da quebrada, mas não nas telinhas. Ou melhor, elas até existem, mas na maioria das vezes são representadas como o núcleo de personagens sem educação alguma, falastrão, cômico que fala alto em todas as cenas e sempre se dá mal. Ou então os personagens “barra pesada”, cheios de armas, drogas, violência e sofrimento.
Claro que existem raras exceções. “Malhação, Viva a Diferença”, por exemplo, foi uma delas. Cao Hamburger, autor dessa temporada única, conseguiu mostrar a periferia de uma forma mais respeitosa e não como o núcleo cômico ou violento da novela. O problema é que, mesmo nesses melhores casos, quem escreve é apenas alguém que está imaginando como é a periferia.
A saída óbvia para isso, é claro, é incentivar as produções audiovisuais feitas na periferia, por pessoas da periferia. Um exemplo disso é a produtora Fluxo Imagem, localizada no bairro Jardim Piracuama, no extremo sul de São Paulo.
“Nosso trabalho é pensado e executado a partir da nossa vivências na favela, com o foco para além de só serviços audiovisuais. Ele carrega esse compromisso com a comunicação de favela, feito pela quebrada e para a quebrada” explica Maxuel Melo, 23 anos, cofundador da produtora.
Mas como uma produtora de vídeo consegue sobreviver nesse momento tão complicado? “No início do ano, tínhamos planos bastante sólidos e uma projeção interessante. Mas com a chegada da Covid-19 tudo isso caiu. O início da pandemia foi o pior momento, muita incerteza do futuro, sem saber se conseguiríamos fechar algo durante este tempo.” conta Max.
Por outro lado, saber viver e trabalhar em comunidade é entender que você precisa ajudar, dividir e divulgar os trabalhos dos seus vizinhos – seja do dono do carreto ou até da bordadeira. Isso é Ubuntu, filosofia africana que trata da importância das alianças e do relacionamento das pessoas, umas com as outras. De forma resumida, ela ensina que as pessoas tenham a consciência do “Eu sou porque nós somos” – e isso é claramente visto na quebrada.
Foi assim, também, com a produtora de Max. “Conforme a coisa foi andando, surgiram demandas de outros coletivos parceiros, dos quais tivemos o prazer de estar junto, e então deu pra entrar algum dinheiro”, afirma.
Este talvez seja o pior momento vivido pela quebrada em muitos anos. Como será que nós, periféricos, seremos retratados no futuro? Como os que mais se aglomeravam e disseminaram o vírus ou os que mais morreram? Bom, no contexto em que somos representados de forma artificial, registrar esse momento se torna ainda mais importante.
E é aí que surge a websérie “Cartas para o Futuro”. Com novos episódios quinzenais no instagram e no facebook da produtora (@fxo_midia), a série vem chamando a atenção por ter um olhar original sobre personagens ainda esquecidos. “O ponto de partida para a série foi a nossa vivência e o olhar que temos para com a nossa quebrada, queríamos mostrar pessoas comuns, que não são retratadas nos meios grandes de comunicação, e como elas imaginam o futuro. E, para além dessas questões pessoais, a série ainda é um recado e um registro para quando sairmos dessa situação”, diz Max.
“Por isso, a série é feita em um ‘tiro só’ – ou sem cortes. Para que a opinião seja a mais crua e a verdade possível da pessoa. No fim, transformamos em um episódio fechado, dando valor apenas para os pensamentos e ideias da pessoa entrevistada”, continua.
Como já dizia Edi Rock, do Racionais, “periferia é periferia em qualquer lugar”. Não somos iguais, mas os problemas e histórias nas quebradas se repetem ao estilo “Ctrl+c Ctrl+v., Por isso, assistir outros com os mesmo sonhos e dificuldades que você é uma oportunidade que surge apenas quando é retratada pelos seus.
“Até agora, os personagens que apareceram nos três episódios são pessoas aqui da quebrada que já conhecemos e temos afinidade, o que facilitou a conversa. Mas nada impede de falarmos com outras pessoas de outras quebradas com outros recortes sociais e vivências”, completa Max.
Importante dizer que as referências dos vídeos da produtora são baseadas em clipes e artistas da própria quebrada, o que torna a linguagem da série é tão original e representativa. Ao assistir aos episódios, no entanto, é fácil perceber que o estilo de documentários como “Edifício Master”, do diretor Eduardo Coutinho, chegou às produtoras independentes mesmo de periferia.
“Para nós é ótimo sermos comparados ao Eduardo Coutinho. Pensamos que, para o futuro, podemos juntar todas as histórias e transformar em um documentário de um passado muito louco que aconteceu.” Vamos aguardar os próximos episódios, Max.