O caso da manicure acusada por engano de ter sequestrado Patrícia Abravanel

“Meu livro vai se chamar ‘Silvio Santos na Mira do Meu 38’.” Essa é a minha tia, Josiene Santos Batista, 45, que foi acusada por engano de ser a chefe da quadrilha que sequestrou Patrícia Abravanel, filha do dono do SBT, em agosto de 2001. Tá confuso? Então senta que lá vem história.

Tudo começou no início de 1993, um pouco antes do plebiscito das formas de governo. Nessa época, o extremo sul de São Paulo era um dos lugares mais perigosos do mundo. Um estudo da ONU em 1996 mostrava que nenhum lugar na Terra tinham mais homicídios do que Jardim Ângela e Capão Redondo. A gente saía na rua e, quando via uma viatura parada, já sabia que era alguém morto no chão.

“Minha arma era bonita demais, era um revolver calibre 38 com cano refrigerado longo, era grandão”, ela me conta em tom de orgulho. “Quando eu ia ao banco pediam para colocar a arma no cofre antes de entrar. Sé loco? Minha arma era bonitona demais pra ficar no cofre, não ia deixar nem ferrando.”

Nessa época, entre 1992 e 1993, ela trabalhava em uma lanchonete no Gigantinho, um ginásio no bairro do Grajaú, zona sul, junto com o marido, Gilvan Santa Rita. “Comprei essa arma para me defender. Os policiais que iam no Gigantinho jogar um futebol diziam para o Van [apelido de Gilvan]: ‘Compra uma arma para sua mulher, se alguém mexer com ela aqui, ela pode meter bala que não vai dar nada’”, diz.

Mas em junho de 1995, com dinheiro em falta e o 38 “moscando”, ele ia ser usado para outra coisa que não apenas se defender na lanchonete. “Eu, o Van e o ‘mais Márcio’ saímos para assaltar uma farmácia”, conta. [Márcio, ou ‘mais Marcio como o chamavam’, era um outro tio meu que foi assassinado, em 2001, por um justiceiro chamado Biotônico, mas essa é uma história para outro post]. Assalto frustrado, todos foram presos e arma “bonitona” foi apreendida.

“Fiquei presa no 25º Distrito Policial, mas sabe como é, se você perguntar para um preso se ele quer fugir, mesmo estando perto da liberdade, ele vai dizer que sim. Lá dentro, só quem passa sabe como é o sofrimento”, diz ela ao mesmo tempo em que me lembra de quando eu a visitava, todas as quintas-feiras com a minha mãe. Confesso que não era meu passeio preferido, mas durante alguns meses a visitei às quintas, e o Van e o Márcio no Carandiru, aos domingos.

Dez meses depois, em abril de 1996, eu com 8 anos, fiquei sabendo que a minha tia, antes presa, estava na casa de uns conhecidos no Parque Brasil, bairro próximo ao Grajaú.

“Eu fugi! A gente conseguiu uma serrinha lá dentro e durante uma semana a gente serrou o ‘pirulito’. Lá dentro a gente chama a barra de ferro da grade de ‘pirulito’. Quando quebramos ele, eu subi, passei pelo vão e pulei de uma altura de uns 15 metros. Quando caí, eu desloquei os dois pés, mas como estava na adrenalina nem senti a dor, só corri!.”

Ela lembra que correu sem rumo e caiu por duas vezes na mesma rua sem saída. Teve até um momento em que precisou se esconder no mato e podia ouvir os cães farejando à procura dela e de mais outras 14 mulheres que fugiram naquela noite.

“Até eu ver um caminhão e implorar para ele me levar o mais longe dali. Ele tinha se ligado que eu era uma das fugitivas, mas ajudou mesmo assim.” Minhas tias se lembram que naquele dia, meu pai, Sérgio Malta, saiu correndo de casa achando que os helicópteros que sobrevoavam o Grajaú estavam em busca da Josiene, mas não –no mesmo dia da fuga, uma joalheria tinha sido assaltada e os bandidos estavam se escondendo na região. “Não sou tão importante assim para ter heliportos atrás de mim” conclui minha tia. Meu pai nega essa história.

Os anos foram passando e a gente se acostumou a “não saber” onde a minha tia estava. Ela morou em várias regiões de São Paulo –uma fugitiva não podia ficar vacilando em casa de parente. Mas hoje isso é diferente. “Hoje eu posso abrir conta, ter carteira assinada”, conta. A pena dela já prescreveu, ela tirou novamente seus documentos e agora é uma mulher livre.

Mas a história daquela arma apreendida no assalto em 1996 não terminou ali.  “Eu estava em casa vendo TV e, enquanto não começava o jogo do Brasil na Globo, dei uma zapiada até a Band. Estava passando o jornal e, do nada, o repórter mostra uma arma igualzinha à que eu tinha. Não deu nem tempo de eu falar com o Van quando do nada ele mostrou a minha foto e disse que eu era a chefe da quadrilha que tinha sequestrado a filha do Silvio Santos. Ali caiu meu mundo.  Pensei: ‘Morri! Acham que eu sequestrei a filha do Silvio Santos, eu vou morrer”, conta.

Era agosto de 2001 e Patrícia Abravanel, filha do empresário na época considerado um dos mais ricos no Brasil, tinha sido sequestrada enquanto estava saindo de casa por uma quadrilha de seis pessoas. O mentor do crime era Fernando Dutra Pinto, que anos depois iria morrer de forma misteriosa no presidio em que estava.

Logo após ele ter recebido os R$ 500 mil de resgate, ele foi se hospedar no flat L’Etoile Residence Service, em Barueri. A polícia foi avisada, e três investigadores que foram ao encontro do sequestrador tiveram um fim trágico: Marcos Amorim Bezerra levou quatro tiros nas costas e um na cabeça;  Paulo Tamotsu Tamaki foi alvejado com sete tiros, e o terceiro investigador, Reginaldo Guatura Nardis, levou um tiro no ombro e sobreviveu para contar a história.

Mas antes de fugir pela janela do nono andar do prédio como se fosse um Homem-Aranha, Fenando pegou um 38 refrigerado longo que estava no chão –arma que tinha sido abandonado por Reginaldo Nardis. O investigador, por coincidência, tinha trabalhado cinco anos antes na 25º DP, mesmo lugar onde Josiene tinha sido presa e onde sua arma havia sido apreendida.

E foi com aquela arma que Fernando Dutra foi, no dia seguinte, parar na casa de Silvio Santos. Ele cortou os fios de energia, pulou o muro e deixou o empresário na mira do 38 da minha tia. Depois de quase oito horas de negociação, espetáculo que contou até com a presença do então governador Geraldo Alckmin, Fernando se entregou, a arma mais uma vez apreendida e ali se iniciava mais um capítulo da história da Josiene.

“Os jornais estavam dando que eu era a chefe da quadrilha, e nisso os vizinhos começaram a dar entrevistas falando de mim e começou o inferno”, ela diz.

Foi realmente o inferno. Naquele momento ela estava sendo identificada pela mídia como a sétima integrante do bando e, como tinha o nome registrado na arma e era fugitiva, supostamente a mandante do crime. A polícia era muito insistente, procurava por ela na casa de todos os parentes e, é claro, todos ficaram com medo de sair para a rua. Tudo porque, lá em 1995, quando a arma tinha sido apreendida pela primeira vez, não deram baixa no nome dela, e o investigador Reginaldo Nardiz passou a usá-la.

Por sorte, a minha avó,e mãe de Josiene, Maria Judite, trabalhava como diarista na casa do jornalista Carlos Graieb, que na época era editor da revista Veja. “Minha mãe pediu pelo amor de Deus que ele ajudasse” ela conta. O editor investigou a história e numa matéria esclareceu aquele mal entendido. Foi um alívio.

Josiene exibe seu RG (Foto: arquivo pessoal)

E para abafar de vez o caso na mídia, um mês depois, em 11 de setembro de 2001, Osama Bin Laden jogou dois aviões nas Torres Gêmeas de Nova York. “Dali em diante me esqueceram de vez”, conta.

Hoje, 26 anos depois e com muitas outras histórias para contar, ela vem juntando todas as informações desta época para escrever um livro, “Silvio Santos na Mira do Meu 38. Gosta desse título?”, acho bom tia, vai dar muito o que falar.