‘Tive que ouvir que eu era muito bonita para ser diarista’ diz Veronica, criadora do Faxina Boa
Há exatos oito meses, no dia 14 de abril, o nosso ministro da Economia Paulo Guedes nos presenteou com uma de suas frases mais peculiares desse governo: “Doméstica ia para a Disney com dólar mais barato, uma festa danada”. Passou tempo e muita coisa aconteceu, apesar de até hoje não entendermos o que ele queria dizer com isso –aqui contém ironia, claro.
Carnaval, fogo na Amazônia, pantanal queimando e ela, a mais temida, a pandemia. E no dia 17 de março tivemos a primeira morte pela doença no Rio de Janeiro, e sim, uma empregada doméstica de 65 anos que percorria semanalmente 120 km da sua casa em Miguel Pereira, no sul fluminense, até o Alto do Leblon, o metro quadrado mais valioso do país. A patroa tinha voltado da Itália e precisava que a senhora de 65 anos em plena pandemia voltasse ao batente – sim, ao batente, expressão usada para os negros escravos que cuidavam do serviço braçal, mais pesado.
Digno como qualquer outra profissão, o trabalho doméstico, além de pesado, exige conhecimento do empregado, não é para qualquer um. O preconceito com a profissão que emprega 6,3 milhões formal e informalmente segundo a Agência Brasil que faz o trabalho ser cada vez mais desvalorizado e em muitas situações precários e traumáticos.
“Já me falaram que eu era bonita demais para ser faxineira”, diz Veronica Oliveira, 39, ex-diarista e hoje empresária, palestrante, prestes a lançar sua biografia e que influencia por meio de suas redes outras centenas de domésticas que passam pelos mesmas tristezas que ela passou, “falar que eu sou bonita demais para uma coisa é preconceito não é elogio”, conclui.
O caminho entre diarista e contrato com Bradesco e palestras no Facebook foi rápido e intenso, em 2016 após um tempo internada por problemas graves de saúde Veronica não ganhava o suficiente para sustentar seus dois filhos “foi quando eu fui para a casa de uma amiga e, enquanto conversava com ela, fui limpando a casa dela, no fim ela quis me pagar, eu percebi ali que eu era boa naquilo, foi aí que comecei a trabalhar como diarista,” comenta ela.
A saída foi se autopromover nas redes em grupos voltados para trabalhos domésticos, e aí que a criatividade cantou. O primeiro cartão de visitas foi inspirado na série que ela mais gostava na época, “Better Call Saul”, da Netflix, mas com os dizeres “Casa zoneada? Better Call Veronica!”, ali surgia o Faxina Boa. Sempre com tom bem humorado ela fez postes de Kill Bill a Stranger Things que viralizaram e dali em diante não a deixou mais sem trabalho.
Hoje com 302 mil seguidores do Instagram Veronica ajuda pessoas que passam por dificuldades que ela passou “no final do ano de 2019 eu decidi focar apenas em produção de conteúdo, não foi um processo fácil, como diarista não me faltava trabalho, mas morando em Itaquera, zona leste, eu passava cerca de três horas por dia apenas no transporte público, fica difícil depois de um trabalho pesado chegar em casa e pesquisar conteúdo para as redes, então com a renda das redes e palestras eu hoje consigo manter minha família bem morando na periferia”.
O que mais encanta no caso da Veronica é como ela transformou o seu trabalho, muitas vezes precário, encarado com preconceito e humilhação em algo maior que ela, “hoje muita gente se sente bem com o que faz quando eu falo, e muitos me mandam mensagens falando de situações tristes que passaram e que eu também passei, isso me faz lembrar de traumas da profissão mas a gente segue firme”, conclui.
A gente, de quebrada, que pega no batente, sabemos como o sistema funciona, eles, os brancos ricos do Alto Leblon sempre vão querer a senhora de 65 anos na casa dele porque ela é “confiável”, o que resta a nós é transformar o inferno em céu e como diz a música ‘Movimento’ do BK, “os que tem a frieza de sensibilidade e a frieza de olhar o mundo são os responsáveis pelos outros olhares”.