‘Quando o dinheiro cai em mãos erradas na quebrada ele causa rivalidade e desunião’, diz o rapper e produtor Jovem Obama

Era abril de 1992, em Los Angeles, Estados Unidos, quando quatro policiais foram absolvidos um ano depois de terem sido flagrados em um vídeo espancando, por mais de 50 vezes com golpes de cassetetes e armas de choque, Ronald King, um motorista negro que em nenhum momento reagiu. Isso foi o estopim para o início de uma série de protestos que resultou na morte de 53 pessoas. Naquele mesmo ano, mas a 8.403 quilômetro de distância dali, em São Paulo, o Secretário de Segurança Pública do governo Orestes Quércia dava a ordem para a invasão no Carandiru, ação que resultou na chacina de 111 pessoas.

A história negra é sempre regada com sangue e desgraça, seja em Los Angeles ou São Paulo. “Onde estiver, seja lá como for, tenha fé porque até no lixão nasce flor”, já diria Mano Brown na música “Vida Loka part. 1”, dando a entender que mesmo parecendo muito, nem tudo é desgraça. Vai vendo: em 29 de junho de 1992 nascia o menino negro, capão-redondense e com uma história ainda a ser escrita, Júlio César Nascimento de Miranda, vulgo o Jovem Obama.

O rapper Jovem Obama em divulgação do seu último álbum “As Aventuras do Jovem Obama” (Foto: Priscila Lippi)

MC, produtor e criador do selo SSGANG, Júlio, Judão ou apenas Obama é um dos nomes mais citados e valorizados na cena do rap underground do extremo sul de São Paulo. “No ensino médio me deram o apelido de Obama, foi lá que escrevi meus primeiros rap, estava aprendendo, tendo contato com o movimento underground. Naquela época, em 2015, o Emicida ainda era um MC em ascensão e os dois caras que mais inspiravam o extremo sul eram Dexter e Mano Brown”, diz Jovem Obama.

Já diria Emicida, nos anos 1990 a periferia de São Paulo era como um elevador que só descia, quanto mais fundo ia mais a gente sofria. Quem por nós viria? Ninguém sabia. Então, como historiadores que a caneta tinha, Racionais MCs, DMN, 509-E, SNJ e RZO, transformaram os discos em livros de história, não mais discriminatória e contraditória, mas agora focando sempre na vitória, para que o terror passado fosse ouvido com notória e que isso inspirasse os próximos criar a sua própria trajetória. Pegou a visão?

O rap foi um dos trajetos percorridos por muitos para fugir das estatísticas de mortes e encarceramentos. “Decidi fazer da minha vida o hip-hop em 2014, embora já tivesse contato com ele durante outros momentos da minha vida esse ano foi definitivo. Minha primeira música lançada foi Black Power, do meu antigo Grupo TheStreetJJ, essa música me levou ao festival AudioGroove”, comenta o MC.

Mesmo estando no lugar obvio para viver de rap, essa não é uma vida fácil, “A maior dificuldade é dinheiro, não por que não existe, é que ele simplesmente está na mão de gente que não tá nem aí pra quebrada. Isso promove desunião, por que afeta a condição que vivemos, passamos a ter rivais invés de aliados, disputa invés de uma frente de negócios e investimentos. Isso faz caminharmos para essa profissionalização em passos bem lentos. Produzir música na quebrada é ato de resistência, sobrevivência da nossa voz que sempre está gritando por liberdade” diz Obama.

Em 1997, Illinois nos EUA, Barack Obama entrava de vez na política como senador estadual. Longe dali, mas também eleito aquele ano, o Capão Redondo recebia o título de bairro mais perigoso de São Paulo, e foi naquele ano que os Racionais MCs lançaram o disco Sobrevivendo no Inferno. “O fator racionais é interessante, eles são uma antena para nós, essa antena colocou nosso bairro no mapa, isso permite que outras pessoas vejam o que tem aqui. Essa vitrine faz com que muitos artistas e produtores prosperem hoje por tudo que ocorreu lá trás” diz o rapper.

Isso motivou a criação de várias gravadoras independentes na região, sem dinheiro, ainda com pouca notoriedade no mercado, mas com muita foça de vontade. É mais fácil você mesmo produzir as suas músicas. Obama fez isso e em 2016 criou o selo SSGANG, projeto nascido para dar espaço pra MCs da zona sul, e que hoje conta com estúdio de gravação, produtora de áudio visual e eventos.

O rapper Jovem Obama em divulgação do seu último álbum “As Aventuras do Jovem Obama” (Foto: Priscila Lippi)

Violência, morte, racismo e pobreza é do cotidiano de qualquer jovem preto periférico dos anos 1990 e início de 2000, isso por pior que seja é o motivo da existência do rap. Mas, além de lidarmos cotidianamente com a desgraça de viver na precariedade, temos também que conviver com os traumas familiares, “minha mãe, minha deusa, minha salvadora, heroína, morreu em 2017. Ela deixou um buraco enorme em mim. Ela sempre foi o meu porto seguro, minha amiga, minha mentora e moldou meu caráter. Se formou na faculdade quando já tinha 50, fez pós-graduação. Ela era inspiradora”, lamenta Obama.

Orfão de pais e morando junto com sua única irmã, hoje o rapper se dedica na divulgação de suas recém lançada mixtap “As Aventuras do Jovem Obama” com o sonho de viver do rap. “Sou uma Quimera, me espelho em muitas pessoas ao mesmo tempo que tento manter minha singularidade. Imagino que minhas opções são diferentes das pessoas que eu me inspirei, como Drake, Brown, Mv Bill, Dre, Snoop, Puff Diddy e Jay-Z, que são caras que eu olho para caminhada deles e penso que são modelos do que quero ser e fazer”, comenta.

Enquanto em 28 de agosto de 1963 Martin Luther King discursava sobre racismo e direitos civis para os negros, em 2021 ainda discutimos se existe racismo no brasil. Isso faz com que jovens Obamas precisem nadar muito além da borda da piscina para poder sobreviver. Por isso temos o rap, ele é o nosso salva vidas.