Sobre crianças, balas perdidas, vagas lembranças e a morte
“Um mistério que comove o mundo. O que teria acontecido a pequena Madeleine que desapareceu em Portugal, hoje no Fantástico”. Quantas vezes vimos esse caso na TV? É uma história que dói, é triste, eu sei.
Nas imagens, dia bem ensolarado em um resort de luxo desenham a cena em que um pai e uma mãe, brancos de classe média, choram para as câmeras e dizem não saber da filha. Porém as investigações até o momento os colocam como principais suspeitos. 3 de maio de 2007, uma menina branca de 3 anos lá do outro continente desapareceu e o mundo agora se comove.
“O caso Madeleine completa um ano neste sábado, hoje no Jornal Hoje”, 2008. Os pais tiveram até a ajuda da Sua Santidade Bento XVI. Moveram céus e terra na busca de Madeleine, literalmente.
2009, 2010, 2011, 2012, e todo ano já iniciava com dois eventos previamente marcados, show do Especial Roberto Carlos na TV Globo e alguma reviravolta no caso Madeleine detalhado em minúcias em uma grande reportagem no Fantástico.
2020, “A polícia britânica obteve uma pista nova do mistério que completou 13 anos” eram as primeiras palavras de Renata Vasconcelos no Jornal Nacional de 3 de maio de 2020. Como esquecer de Madeleine?
Rio de Janeiro, domingo, 27 de dezembro, Lucas Matheus (8 anos), Alexandre da Silva (10 anos) e Fernando Henrique (11 anos) saíram de casa no dia 27 de dezembro por volta das 10h30 para brincar no campo de futebol ao lado do condomínio onde moram, no bairro Castelar, e nunca mais voltaram. Sem ajuda do Papa, sem matérias no The Guardian, The Sun o Daily Mail. Um caso que não comoveu o mundo.
Mas o que você queria também? Belford Roxo não é Londres parceiro.
E criança preta brasileira desaparecida ou morta não é notícia, faz parte do jogo, a não ser que o carro estacionado pelo Caetano no Leblon tenha algo a ver com isso.
Sequestram, assassinam, traumatizam, matam crianças dentro e fora de casa, com gripezinha ou sem. Game Of Thrones? Não, Rio de Janeiro, onde o dragão é um carro blindado preto que distribui balas perdidas que são achadas diariamente em pequenos corpos ainda em desenvolvimento, geralmente pretos, pobres e sem vida. Aqui é a vida que brinca de “Resta Um”.
De 2007 a 2017, 44 crianças morreram vítimas de bala perdida no Rio de Janeiro. Quantos especiais no Fantástico elas tiveram? Dá um Google aí:
“Especial do Fantástico sobre crianças vítimas de bala perdida”, põe aspas que você acha melhor.
6 de fevereiro de 2018 recomeçou a contagem com Emily de 3 anos e Jeremias de 13. Lembra deles? Eu também não, e sou culpado por isso também, a gente normaliza a morte de pessoas que não deviam morrer. Que acabaram de nascer. Quem sobrevive nesse inferno merecia uma revanche parceiro.
Mais uma mãe revoltada, uma pergunta sem resposta.
Como o policial não viu seu uniforme da escola?
Vinícius é atingido com a mochila nas costas.
Como é que eu vou gritar que a Favela vive agora?
“Confusão, protesto e vandalismo. Ônibus é queimado em Belford Roxo após suspeito de sumiço ser preso agora no Jornal da Record”. Um homem foi preso acusado pelos vizinhos de ter matado as crianças em um ritual de magia negra. Isso é tão 1800. Eles não estão nem aí. Prenderam uma pessoa que os vizinhos “acham que pode ser ela”. “Prende qualquer um pra eles calarem a boca!” Imagino o delegado do caso falando aos berros na delegacia.
“Polícia diz que acusado por moradores não está envolvido no sumiço de meninos em Belford Roxo”, piada.
Como diria o ditado: Flor que nasce no lixão não tem tempo de vida. Talvez por isso a menina Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, que foi assassinada voltando para casa com a mãe, no Complexo do Alemão, perdeu a vida quando uma bala perdida a encontrou, caída sem direito a arbitro de vídeo. Segue o Jogo.
Como será que está Madeleine? 15 de outubro de 2013, “Polícia britânica divulga retrato de como a pequena Madeleine estaria hoje com 10 anos”. A pior coisa para um pai deve ser não saber o que aconteceu com o filho, isso da uma falsa esperança. Morreu? Está perdido, com fome? Sofrendo?
Não é assim para os pais pobres e negros. 16 dias depois e já sabe que morreram. Querem só poder enterrar os filhos, se despedir. Querem justiça, mesmo sabendo que não vão ter.
De Pedro Cabral a Sérgio Cabral, a gente continua buscando mudanças substanciais e o assustador é quando se descobre que tudo deu em nada e que só morre pobre.
13 de janeiro de 2021, e iniciamos o ano com dois compromissos pré-agendados, Especial do Roberto Carlos e 3 de maio você já sabe qual vai ser a matéria do dia.