A imagem do traficante está tão banalizada que Falcão não teria mais impacto, diz MV Bill
Longe dos palcos e apresentando o programa Hip Hop Brasil, MV Bill trabalha em home office e vê a favela mudando mas ainda longe de vencer
MV Bill está em casa, agora muito mais do que antes. Ativista, ator, documentarista, escritor e uma lenda viva do rap, Alex Pereira Barbosa, 47, ficou espantado quando pela primeira vez foi chamado de Tio Bill. “Eu levei um susto, achava que eu ainda era muito jovem”, diz o cantor que lembra de momentos em que se tornou trending topics do Twitter quando lançou a música “Favela Vive parte 2” com o grupo de rappers bem mais jovens, ADL MCs. “A molecada falava: quem é esse cara?”, lembra.
Em meio a pandemia, o cantor viu a necessidade de ser o exemplo para os seus fãs e transformou sua casa em uma fábrica de lançamentos de discos, singles e até um livro de contos sobre momentos marcantes da vida e carreira.
Trabalhos esses que, por meio dos streaming nas plataformas digitais, têm o ajudado durante esse período em que shows estão proibidos.
Nascido na Cidade de Deus, bairro periférico do Rio de Janeiro, e atuando ativamente nos movimentos sociais, ele foi um dos fundadores, em 1999, da CUFA (Central Única das Favelas), que na pandemia, por meio do programa “Mães da Favela”, ajudou mães solo moradoras da periferia com uma bolsa de R$ 240 mensais. No ano de 2020, a ação ajudou mais de 1,3 milhões de famílias, entregando 20 toneladas de alimentos em mais de 5.000 favelas no Brasil.
Morte de amigos pelo coronavírus, falta de esperança, constante perseguição à música preta foram alguns dos temas que conversei com MV Bill e que você confere agora.
Pandemia e home office
Eu vivo da aglomeração, vivo de aglutinar as pessoas e infelizmente é o setor que mais está sofrendo, e provavelmente o último que vai voltar a trabalhar normalmente. Isso me fez buscar formas criativas de continuar sobrevivendo, de manter minha arte viva e de pagar meus boletos. Consegui isso fazendo rap de dentro de casa, sem me colocar em risco. Faço tudo aqui [ele mostra seu escritório], escrevo minhas músicas, gravo elas, negocio e divulgo meus clipes e o programa de videoclipe que faço, Hip Hop Brasil no canal Box Brasil. Então me sinto privilegiado por isso.
Mas eu perdi vários amigos, pessoas próximas a mim. Um deles foi o Márcio Borges, cantor da minha banda, a grande voz que está na música Marginal Menestrel e que está no vídeo clássico no Faustão [participação do cantor em no programa dominical em 2004 que foi polêmica na época]. O irmão dele, o Pará, fez o enterro e logo depois também morreu pela doença. Estou perdendo pessoas queridas. Perdemos o Enézimo, [rapper de Santo André em São Paulo], que, um dia depois de morrer, o pai dele também morreu. Isso está sendo devastador, cara. Quem não tem ninguém que morreu na família, conhece alguém que morreu.
Vamos sair disso só com a vacinação em massa. Mas, nesse momento que a vacina está escassa, isso é culpa do país, de não se programar corretamente para poder vacinar sua população, mesmo sendo uma excelência em termos de vacinação, pô! Agora a gente precisa ficar na torcida, né, cara? Para que aconteça algum plano mirabolante e que isso possa acelerar. Não tem outra alternativa.
Eu não recebi nenhuma ajuda do governo nesse período. Se recebesse, eu não abriria mão, não iria deixar esse dinheiro com o governo, eu pegaria e faria doação para alguém, veria quantas cestas básicas daria para comprar com essa grana.
Eu consegui criar um estilo de vida que eu consigo me bancar com a minha própria música. Que mesmo em meio a pandemia, eu consigo me sustentar. Mas isso só se tornou viável à medida que as pessoas aprenderam que, quando elas ouvem nossas músicas nas plataformas digitais, aquilo vira uma receita, aquilo fortalece o artista. Eles entenderam que para ajudar o artista não é mais comprando um CD, um DVD, mas quando você compartilha a música dele, quando o acompanha nas redes sociais, quando você prestigia ele. Isso me deu um certo equilíbrio financeiro.
Mas muitos amigos meus de outros setores, como o teatro principalmente, estão passando tanto aperto financeiro que não têm dinheiro nem para pegar uma condução nem para comer em casa. Está sendo uma situação bem complicada para eles.
A retomada do rap
Se tem uma coisa que nunca parou é a produção musical, o rap tá se movimentando. É só olhar, tem muitos rappers que lançaram coisas novas durante a pandemia. Eu sou um deles. Eu parei com os shows, para não aglomerar, para não correr riscos porque não é recomendável. Mas eu quando crio músicas de casa, estou contribuindo com as pessoas que não estão podendo sair, que estão querendo consumir, que precisam de entretenimento. Agora você imagina uma pandemia dessa sem arte, sem música, sem filme, sem novela, sem série… A arte é extremamente importante nesse momento. E quem pode– não só pode, mas quem realmente quer produzir música nesse momento– isso é de grande valia para a quebrada. A arte faz refletir, por isso eu venho produzindo, para as pessoas refletirem o que a gente está passando nesse momento.
Ídolos no rap e hoje
Eu venho de uma época que a gente esperava ansiosamente o lançamento de um novo álbum, porque eles tinham contextos e ficavam para a história. Até no disco que vou lançar [previsto para 16 de abril], eu tentei resgatar isso. Quero que as pessoas ouçam ele inteiro, não só a música que tem a batida mais gostosinha ou a que tem o refrão com partes mais complexas, mas o álbum com começo, meio e fim. Era assim lá atrás, toda vez que anunciavam que iria lançar um disco do Public Enemy ou do Ice T. A gente ficava desesperado, era assim com o Snoop Dogg, com o Dr. Dre, essa galera eram meus grandes ídolos. Aqui no Brasil, Thaíde e Dj Hum sempre me emocionaram, eu tinha todos os discos deles. Quando saiam os discos dos Racionais, a cena do rap movimentava. Tudo isso me marcou antes mesmo de eu gravar meus discos.
Hoje, eu tenho que me preocupar com a minha própria música, então é mais difícil. Eu não consigo acompanhar a cena dessa mesma forma. Por conta do programa Hip Hop Brasil, eu tenho contato com uma porrada de grupos de rap, assisto muitos videoclipes, tenho que aprovar o que vai para o ar, então acabo acompanhando a cena de uma forma mais generalizada. Mas não tenho aquele tesão de esperar um disco ser lançado, nem aqui e nem na gringa. Quando lançam um disco que dizem ser legal, uma semana depois, sem pressa, eu ouço com calma, sem correria.
A origem do clássico rap pesado
Ice T era traficante e vendia rádio de carro que roubava para pagar as música dele. Public Enemy era música de rua misturada com política. Isso era o que eu ouvia, eu aprendi gostar da história dos caras, o que eu fiz foi trazer aquilo que eu ouvia para a minha realidade no Brasil, o ritmo, com a realidade e o som pesado. Os meus dois primeiros discos [“Traficando Informações”, de 1999, e “Declaração de Guerra”, de 2002], são discos que voltei a ouvir durante a pandemia pra me inspirar a escrever o disco novo. Fiquei muito tempo sem fazer esse tipo de disco, com conceito. Antigamente, eu pensava na música, na capa, na passagem de uma faixa para a outra. Esses discos são considerados clássicos do rap nacional, mas são minhas referência também.
Eu falo muito sobre política nas músicas, racial e social, acaba que o Brasil é um lugar muito fértil, é fácil ter inspirações. Para quem sabe desenrolar esse assunto. Não é qualquer MC que sabe desenrolar sobre esse tema, mas pra quem sabe, o nosso país ajuda muito nisso.
Tio Bill e o rap jovem
A primeira vez que me chamaram de Tio Bill foi lá em Balneário Camboriú [município litorâneo em Santa Catarina], eu levei um susto! Eu ainda achava que eu era jovem pra caralho. Mas depois disso, eu assimilei e vi que isso era uma coisa de respeito, sabe?
Muito moleque me chama de mestre, professor, tudo isso pra mim é uma respeitabilidade. Todos esses convites que eu recebo de pessoas mais jovens para participar em músicas, é um acréscimo duplo. Além da participação na música, ter que rimar em outras batidas, cantar em cima de um beat que eu jamais cantaria, é sempre uma nova experiência. Um exemplo disso foi “Favela Vive” com o ADL, aquilo me lançou em outro patamar na internet, foi a primeira vez que eu entrei nos assuntos mais comentados do Twitter, sem forçar a barra. As pessoas ouviram e comentaram do meu flow, da minha levada, inclusive muito moleque falou na época, “quem é esse cara?”. Foi um jeito de eu me apresentar para uma galera mais jovem. Muito rapper da antiga ainda está na ativa, mas, nessa produção com a galera mais jovem, acredito que eu seja o cara que está produzindo mais.
Funk e criminalização
Nos anos de 1980, eu via que algumas socialites no Rio de Janeiro, quando eram entrevistadas, falavam que não gostavam de funkeiro. Elas não odiavam o funk, elas odiavam o estereótipo, o preto favelado, o cabelo crespo, as roupas, e isso veio se perdurando até os dias de hoje. A forma como se identificam musicalmente de forma rítmica, que é a forma do pobre e favelado, é como eles ganham seu dinheiro.
Por outro lado, as mesmas regras que valem para os funkeiros dificilmente vão valer para os sertanejos. Talvez seja porque no sertanejo não tenha tantos cantores pretos, mas nos ritmos dos pretos tem muito preto fazendo coisas boas e isso deixa as pessoas incomodadas.
O que é deles, é deles; o que é nosso é de todo mundo, podem fazer o que quiser, inclusive prender.
Essa criminalização sempre vai existir no rap e no funk, são músicas que tocam em assuntos que você não vai ver em outros lugares. Sem desmerecer os meus amigos do pagode, mas não vemos ninguém criminalizando o pagode atualmente, no máximo vão dizer que não gostam, mas não criminalizam. Músicas que falam esse tipo de assunto, e que tocam na ferida que ninguém quer falar, tendem a ser assim. Vai ser uma perseguição eterna.
Falcão, meninos do tráfico
Foi um marco na minha carreira esse documentário [Falcão – Meninos do Tráfico, de 2006]. Mas eu não penso mais em fazer isso de novo. Quando fui fazer ele, eu via a necessidade de mostrar para o Brasil um tipo de pensamento que até então era tudo baseado no achismo. Tínhamos apenas teses de antropólogos, sociólogos, estudiosos, a gente não tinha a voz de quem está de dentro, no tráfico mesmo. Esse foi o grande diferencial do documentário. O próprio jovem traficante falando trazia uma conotação diferenciada. Hoje isso não tem mais impacto, agora o próprio bandido se filma, se você procurar na internet vai achar vídeos de ladrões executando outros desafetos deles mesmo. Tem vídeo de milícias invadindo outra favela, às vezes eles fazem lives de uma invasão de uma comunidade para a outra. A curiosidade acabou, se banalizou, a reflexão que o documentário nos trouxe ficou só para aquela época.
Bill de 1999 X Bill de 2021
Teve uma mudança brusca, lembro de quando eu tinha que gravar a voz para uma música nova, o Celso Athayde [produtor musical] avisava: “Bill, amanhã tem gravação de voz em São Paulo”. Eu tinha que me preparar no mesmo momento para pegar o ônibus rodoviário do Rio no máximo à meia-noite, para chegar de manhã no Tietê [rodoviária de São Paulo], ali às 6 da manhã pegar o metrô, descer na estação São Bento, e ia na “pernada” até a Bela Vista. Tudo isso para ficar ainda lá esperando a minha vez de gravar.
Fazia isso porque era um sonho, sabe? Hoje se você me falar assim: “Bill precisa pegar um ônibus às 6 da manhã”. Mano, eu já vou sentindo dor, só de pensar. Na época, pelo sonho, pela jovialidade, eu queria muito aquilo. Hoje eu sou consultado por artistas de dentro da Cidade de Deus, gravo a música aqui mesmo, faço o videoclipe também aqui no bairro com uma equipe que mora aqui, agora a estrutura está toda aqui. Então a evolução e a mudança do MV Bill revoltado para o Tio Bill de hoje é brusca, muito porque eu mudei e porque a favela está mudando.
Claro, está longe da favela vencer, mas a favela tem se modificado, e isso vem crescendo. Eu estou fazendo uma porrada de coisas que estão me dando um puta orgulho. Gravei uma música de um moleque que tem a metade da minha idade, quando eu falei minha idade ele disse: “nossa, é a idade do meu pai, mané!” [ele ri]. É um bagulho muito foda poder vivenciar esse bagulho. Não é os caras pegando minha voz, depois de morto e fazendo uma montagem. É gente entrando no estúdio comigo, aparecendo no vídeo junto. Estar com essa geração de uma forma muito natural, sem desmerecer o outro, é um trabalho que diariamente tem me mudado.
Cancelamento
As músicas do passado, a gente não tem o que fazer. Se tiver errada é um erro que cometi e não tem como desfazer, tem como aprender com o erro e tentar ser uma pessoa melhor com aquilo. Eu jamais faria novamente uma música como a “Só Deus Pode me Julgar”, não que a realidade não permita, mas nunca mais eu vou falar aqueles nomes em uma música da forma eu falei: SBT, Van Damme, Sérgio Naia, Fernandinho Beira-Mar. Muita gente gosta de mim e tatuou o nome da música no braço, era muita ousadia ir no programa dominical da Rede Globo e falar do programa do Gugu [no SBT].
Hoje em dia, eu gosto de fazer músicas falando de política, mas não cito mais nome de ninguém, até por conta de processos. Quando você começa a ter visibilidade, automaticamente você começa a ficar mais podado, começa a se policiar mais. Quando você fala para poucas pessoas ou para um nicho, você larga o verbo, eu estava em um momento que largava o verbo. Quando eu vi que eu estava chegando em outros lugares, quando eu vi que muitos que estavam do meu lado não estavam mais me abraçando, nem todo mundo que era da minha origem torcia por mim, eu tive que aprender outras formas de falar. Essa vigilância na internet, a vigilância do próprio fã… Comecei a tomar mais cuidado com a forma que eu falo, em não estar dando nome mais como eu falava antigamente.
Sonho
Passar o ano de 2020 do jeito que foi, viver depois de tudo isso já é um sonho. Dia 14 de março completou um ano do dia que eu estava indo para um show em Maceió, e durante o trajeto, a caminho do aeroporto, o produtor disse que estava tudo cancelado, que estava tudo fechando e que a pandemia tinha começado. A partir daquele dia, eu não sabia direito o que fazer, como seria minha vida, mas consegui encontrar um caminho a através das redes sociais, do trabalho de dentro de casa e das pessoas que não me abandonaram, então eu sou muito grato por isso. O que aconteceu e está acontecendo na minha carreira mesmo durante a pandemia é um sonho.