Não é cedo demais para saber que a vida é desgraçada aqui
“Será que são tiros ou fogos?”. Saber diferenciar fogos de tiros é uma competência que só a quebrada te dá.
Agacha, deita, vai pra debaixo da cama, faça isso sempre que ouvir fogos e tiros.
Não vivemos em uma guerra. No confronto armado entre nações, os soldados dão suas vidas para defender seus cidadãos, seu território e sua nação. Aqui, os soldados brincam de tiro ao alvo e mesmo quando erram, acertam.
Kathlen Romeu, 24, viva, sempre sorridente, transmitia bem-estar a todos ao seu redor. Levava uma vida com ela, segurava essa vida com as mãos, os braços e a barriga. Teve a infelicidade de nascer mulher, negra e periférica.
A guerra às drogas aqui é uma espécie de “Malhação” da deep web: renovada anualmente, apenas altera os personagens, os atores, novas histórias sempre com os mesmos finais. Ninguém liga, ninguém se importa, mas todo ano tem uma temporada nova.
No clima quente do Rio de Janeiro, a minha gente soa frio. Nunca mais eu vou sorrir.
Na periferia, favela, quebrada, morro é como viver em um campo minado. Você pode estar passando ao lado de uma boca de fumo com pessoas armadas e não acontecer nada, pode visitar sua mãe e tomar um tiro. A bala da AK-47 sempre será encontrada, às vezes no muro, sempre em corpos pretos.
“Pelo amor de deus doutor!” Aqui fora revolta e dor, lá dentro estado desesperador. Assustador é quando se descobre que tudo deu em nada e que só morre pobre.
Poucos pretos e pobres têm a chance de morrer de velhice. Helena Malta das Candeias, minha bisavó, morreu um mês antes de completar 97 anos por conta de uma infecção generalizada. Privilegiada em viver muito, azar em ser preta. Viu a morte dos pais, marido, filhos, sobrinhos, netos e bisnetos.
“Essa historinha é contada há anos, que a polícia foi recebida a tiros. Quem foi recebida a tiros foi a minha filha!”, desabafa Jackeline, mãe da Kathlen.
A vida é desgraçada aqui.
Uma “revolução Haitiana” seria a única solução. Dizimar o estado que trabalha como uma máquina de moer pobre. Aqui no Brasil, a política de extermínio do povo preto anda de vento em popa como os navios negreiros de 1500, onde histórias de mulheres negras grávidas eram lançadas ao mar e seus filhos se tornavam reis do oceano.
2021. Matam mulheres grávidas seja por bala ou cloroquina, e o silêncio do Pró-Vida é ensurdecedor. O nazismo é aqui.
“Mulher branca grávida morre após levar um tiro, após um tiroteio em seu apartamento no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro, entre policiais e bandidos”. Uma notícia dessa derruba o secretário de segurança, prefeito, governador e, se ela for de direita, a família receberia visita até do presidente da República pedindo desculpas e indenizações.
Como Kathlen é preta e estava na favela, “a polícia diz que foram apreendidos um carregador de fuzil, munições de calibre 9 mm e material entorpecente a ser contabilizado”. Não precisa de muito para justificar. O secretário diz que a área é perigosa e abafa o caso.
E esse foi apenas mais um episódio de “Malhação”, ninguém liga, ninguém se importa e o final é sempre o mesmo.
Aguardem cenas do próximo episódio.