Roubar para comer não deveria ser crime, é legítima defesa

Duas garrafas de Coca-Cola, um suco Tang e dois pacotes Miojo, R$ 21,69. Na conta: cinco filhos com fome, 41 anos sofridos e uma sentença aplicada por um desembargador que a condenou por “reincidência”, como se sentir extrema fome por mais de uma vez fosse crime.

No país onde mais de 24,5 milhões não têm certeza de como se alimentarão durante o dia, é um risco observar o supermercado pelo lado de fora, sem poder matar a fome.

“Amiga, a África!”. Não, Rafa Kalimann, Brasil.

No grupo “Vila Mariana — Um bairro queridinho de São Paulo”, do Facebook, um comentário, “morrer de fome não justifica roubar. Minha mãe teve sete filhos e nunca roubou”, conta uma senhora em um post com o link da matéria colocada no grupo. Em seu perfil na rede, ela recebe curtidas e categóricas frases de aprovação.

Em 19 de maio, Edson Fachin, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), condenou o ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, a pagar R$ 2,4 milhões à Justiça. Montante restante de uma multa que ele não quitou.

Quantas garrafas de Coca e pacotes de Miojo Maluf comprou? Algumas reincidências. 

Enquanto isso, no Elevado Presidente João Goulart, apelidado de Minhocão: sol, cerveja, bicicletas do Itaú, camisas coloridas da Renner, bronze, sorrisos e festa com bexigas. “Graças a Deus hoje o dia está quente!”, disse a menina de cabelo rosa. 

Abaixo: cheiro de miséria misturado com urina, fezes, crack e fome.

Pessoas que perdem o poder da invisibilidade quando atrapalham o trânsito, causando medo em quem passa. Empesteando o ar com o seu cheiro habitual.

A uma distância de R$ 21,69 de Uber da Vila Mariana, a polícia continua sendo o braço governamental que dissemina o mal com suas fardas e caveirões. A serviço daqueles que controlam opiniões e que roubam milhões, os donos de mansões.

O trabalho liberta, já diziam os nazistas. E, como os burgueses, querem o trabalho do pobre ou então sua morte.

“A distribuição de alimentos na Cracolândia só ajuda o crime”, disse a deputada estadual Janaína Paschoal, do PSL. 

“Mas olha, falando dos projetos sociais, algo muito importante… é assim: as pessoas que estão na rua. Não é correto você chegar lá na rua e dar marmita, porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua. Porque a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua”, afirmou Bia Doria, mulher do governador João Doria, do PSDB.

É bilionário indo para o espaço e pobre envergonhado vendo sua família passando fome. 

Nos anos de 1880, os pretos escravos se revoltaram e fizeram rebeliões por não aguentar serem mais torturados, escravizados e mortos. Vinham aos montes em navios negreiros para passar dor e fome.

Os camburões hoje realizam essa tarefa. Levam pobres pretos escravizados por senhorios, geralmente brancos e ricos. Sem dignidade há muito tempo, agora fazem parte de outra população, a carcerária. 

Sequelas, miseráveis, entrando pela porta de serviço uniformizados e sendo pisados. Guiados pelo ódio e crescendo. MST, CUT, UNE, CV e PCC. O mundo se organiza, cada um, à sua maneira.

Roubar para comer deveria ser considerado legitima defesa, por simplesmente estar matando aquilo que nos mata.

A geladeira desligada: água, arroz velho e uma pote de Doriana que guarda o resto de uma cebola e um alho. Cada mãe sabe a dor que sente, quando vê um filho passando fome. Essa é mais uma dor que o tempo não vai curar.